O URBANISMO: ENTRE A CIDADE E O TERRITÓRIO
O URBANISMO: ENTRE A CIDADE E O TERRITÓRIO
Regina Maria Prosperi Meyer
A observação e, sobretudo, a vivência das imensas e, aparentemente, ilimitadas manchas urbanas que compõem o panorama espacial das grandes cidades e metrópoles contemporâneas são, muitas vezes, desalentadoras. Para o urbanismo, essa observação produz perguntas de difícil resposta. As mais recorrentes nascem da dificuldade de apreender e entender a sua organização, de distinguir sua forma e de prever seu funcionamento. Diante de sua organização física se pergunta, utilizando instrumentos de trabalho já consagrados, quais serão os seus elementos estruturantes; diante de sua desmesurada dimensão se busca descobrir a lógica de seu crescimento; mergulhando no emaranhado de seus espaços surge o desafio de se estabelecer caminhos que os percorram. Em meio a todas essas questões emergem, também, algumas outras, específicas do exercício da profissão. Pois, é inevitável perguntar: qual terá sido o papel dos planejadores e dos urbanistas no processo que as levou a assumirem essa configuração, tão avessa às possibilidades e meios com os quais o urbanismo moderno trabalha?
As questões se sucedem e logo se verifica que os instrumentos para capturar a cidade, agora transformada em mancha urbana, já não poderão ser os mesmos com os quais o urbanismo vem trabalhando desde o início do século XX. As cidades e as metrópoles exigem hoje uma revisão conceitual e propositiva, proporcionalmente tão profunda e abrangente quanto as próprias transformações que estão alterando seus atributos. Será apenas a partir do esforço de renovação que surgirão as condições para uma possível metodologia de projeto na escala adequada.
Enquanto prevaleceram as distinções que demarcavam claramente o campo e a cidade, a capacidade de descrever as duas entidades, seus atributos específicos, seus pontos de contato, suas fronteiras, os avanços da urbanização sobre o campo e, principalmente, as relações que existiam entre ambas, a tarefa de intervir em cada uma delas foi exercida com alguma precisão e previsão.
A conhecida discussão acadêmica dos anos 1960 e 1970 que teve por foco o caráter indissociável que articulava o campo e a cidade, ofereceu um interessante ponto de vista sobre a importância da presença do modo de produção industrial nesses dois universos (1). Hoje esses entes precisos se dissolveram em nebulosas urbanas que confrontam nossa capacidade de reconhecer e classificar seus espaços. A própria presença de termos, tais como – mancha urbana – ou ainda, o mais expressivo – mancha de óleo – denuncia a dificuldade de apreender as suas características.
O percurso histórico do urbanismo, enquanto disciplina liberal, sobretudo na linhagem inaugurada no Renascimento e revista de forma radical na segunda metade do século XIX, atesta que a presença de um objeto claramente definido – a cidade – sempre esteve no horizonte do pensamento e da prática. Tanto a análise urbana quanto os projetos realizados durante três séculos evidenciam que o objetivo do urbanismo era justamente oferecer propostas pautadas por padrões de racionalidade formal e funcional. O tema introduzido pelo arquiteto e historiador do urbanismo Leonardo Benévolo (1975) "a cidade como objeto de projeto" sintetiza a imensa reflexão que está contida nos tratados medievais que tiveram seu foco nas cidades (2). No texto inaugural do tratadista Leon Battista Alberti (1406-1472) De Re Aedificatoria, dedicado à concepção e realização de cidades, a abordagem hierarquizada segue uma lógica baseada na escala territorial. No primeiro de seus seis princípios, L. B. Alberti aponta a região como um ponto de partida para análise e para a proposta. Resguardando as distinções óbvias é possível reconhecer alguma afinidade entre o sentido moderno do termo território e o termo região por ele utilizado. Apesar do conceito de região (3) ter adquirido uma importante presença no pensamento e na prática do urbanismo e do planejamento urbano no decorrer dos séculos XIX e XX, nesse texto do século XVI a relação, melhor dizendo, a equivalência entre ambos, é bastante clara.
Foi apenas a partir da publicação do texto "The new regional pattern" de 1945,(4) que o termo região ganhou para os urbanistas uma maior precisão, afastando-se do conceito de território. Seu autor, L. Hilberseimer (1885-1967), estava interessado em estabelecer princípios mais científicos para o planejamento urbano e para o urbanismo quando analisou o conceito de região com muito cuidado, fornecendo para os profissionais um conjunto hierarquizado de descrições e de padrões de espaços urbanizados. O seu panorama, hoje considerado muito esquemático, foi importante para a organização do pensamento e dos trabalhos dos planejadores urbanos naquele momento. Trabalhando a partir de uma classificação dos núcleos urbanos e utilizando como referência os elementos da organização espacial e dimensões das cidades, sua proposta é quase que exclusivamente voltada para o estabelecimento de categorias de núcleos urbanos e para as suas questões específicas. Sua análise, muito detalhada na descrição dos espaços urbanos, é, evidentemente, muito pouco dinâmica e simplificadora no que diz respeito às questões funcionais. Contempla muito pouco as dinâmicas de transformações inerentes ao processo de constituição dos territórios urbanos.
Foi, portanto, a partir da constatação da presença de alterações profundas no seu objeto de estudo e projeto (a cidade), assim como da insuficiência de seus instrumentos de análise, invalidando as suas premissas de trabalho, que o urbanismo reencontrou, na segunda metade do século XX, o termo território. Embora tenha recebido um olhar de viés dos geógrafos, zelosos de sua precedência no uso do termo, os urbanistas, defrontados com a nova organização urbana, não puderam abrir mão do termo território para realizar suas propostas.
A evidência de um processo de urbanização difusa que avança para áreas cujas características são muito indefinidas, nem propriamente urbanas nem tampouco rurais, aponta para a presença de uma forma de ocupação do território que vem sendo descrita como um tipo específico de suburbanização sem limites. Um grande conjunto de dados e análises confirma que a partir das duas últimas décadas do século XX um ciclo iniciado no século XVIII, de contínua dissolução da organização específica e dos limites físicos dos dois universos – o urbano e o rural – chegou a seu término. O conceito de urbanização difusa foi criado para descrever esse novo e intenso fenômeno.
DO"PROJETO TOTAL" DA CIDADE COMPACTA ÀS "PEÇAS URBANAS" DA CIDADE DIFUSA Pressionado pelos desafios das novas questões o urbanismo iniciou, na década de 1960, uma revisão de seus métodos de análise e de projeto (5). O primeiro gesto foi abdicar do conceito e, sobretudo, da prática do "projeto total". Isto é, de um projeto que abarcasse toda a cidade como objeto de projeto, fórmula tão cara aos urbanistas do início do século XX que trabalhavam com as premissas do Movimento Moderno. Hoje, diante das imensas manchas urbanas nas quais a cidade se esconde, tais premissas mostraram-se tão insuficientes que buscar novos parâmetros tornou-se essencial para a sobrevivência da própria disciplina.
Retirada do horizonte teórico e prático a ambição do "projeto total", impôs-se, como um corolário, a necessidade de criar, para fins operacionais, os novos territórios de projeto. Afinal de contas, mesmo deixando de lado a utopia de uma totalidade urbana projetável, acalentada desde o Renascimento, reconheceu-se que é fundamental demarcar espaços urbanos que serão objeto de proposta e transformação.
Face à impossibilidade do projeto total ficou assentado que o novo método de trabalho depende da capacidade de instaurar uma atividade de análise que conduza à demarcação de trechos urbanos espacialmente circunscritos e funcionalmente abrangentes. A palavra de ordem que traduz essa nova metodologia pode assim ser resumida: analisar e apreender os aspectos espaciais e funcionais do território, considerado em toda a sua extensão, e elaborar a partir daí os critérios para criar perímetros homogêneos no seu interior, nos quais um partido de projeto poderá ser desenvolvido. O termo "peça urbana" descreve um trecho de cidade no qual se estabelece um perímetro que será objeto de análise e de projeto urbano.
Intervir no território criou para os urbanistas a necessidade de aperfeiçoar seus instrumentos de leitura e de interpretação do território. Esse encaminhamento, aparentemente simples, é uma verdadeira revolução na relação entre o urbanismo e o território, pois exige de saída que a atividade de projeto se inicie pela análise que definirá, da forma mais precisa e justificada possível, o trecho urbano que será objeto de intervenção. Como desdobramento lógico dessas operações tornou-se também indispensável estabelecer uma relação clara com todas as escalas com as quais o perímetro demarcado está relacionado, tanto do ponto de vista espacial quanto funcional.
É também importante não perder de vista que todos esses encaminhamentos metodológicos do projeto urbano atendem à necessidade de superar as formas de abordar a cidade compacta, pois a análise da grande escala, isto é, do território, é decisiva para o projeto que agora assume como objetivo articular as "peças urbanas" que compõem a cidade difusa.
Para entender o significado dessa renovação, é preciso lançar um rápido olhar sobre a própria história da prática do projeto urbano. Considerando o seu percurso teórico e suas proposições, vemos o quanto a "ordenação do território" foi o grande objetivo e o único princípio norteador. Sendo que o auge deste objetivo se exprimiu através das premissas funcionalistas de organização total das cidades através de um quadro considerado hoje bastante limitado das funções urbanas. A superação desse modelo é hoje um consenso e ponto de partida para uma revisão teórica e prática da arquitetura e do urbanismo. É a partir deste ponto que podemos construir a pergunta-chave para o urbanismo contemporâneo: qual é hoje o território do plano urbanístico e o território do projeto urbano, tendo em vista as novas dinâmicas de transformação?
Antes de apresentar algumas idéias e discutir encaminhamentos para tentar buscar uma resposta, é necessário também observar a especificidade da atividade urbanística. Pois, depois de tantas décadas de desencontro entre teoria e prática urbanística, é necessário rever algumas questões. A primeira, já mencionada acima, diz respeito ao fato da atividade urbanística só se realizar plenamente se forem observados dois parâmetros essenciais: o primeiro é trabalhar em nova escala e, o segundo, é identificar e descrever os atributos físico-espaciais associados às novas funções que o território está desempenhando na organização produtiva contemporânea. Essas duas questões são centrais para o tema deste artigo, qual seja, como o urbanismo deve abordar o território urbanizado neste momento em que a cidade ganha novas configurações.
É um fato, já bastante observado e muito teorizado, que a reestruturação das cidades e metrópoles está, desde a década de 1980, vinculado às mudanças dos padrões das atividades urbanas e à escala e configuração adquirida pelas manchas urbanas. Portanto, antes de abordar as "manchas urbanas como objeto de projeto", é importante relembrar que o urbanismo é uma atividade analítica que se realiza apenas quando assume uma dimensão propositiva. Desta forma, para afirmar que um trabalho se realiza na área específica do urbanismo, é necessário avaliar a conjugação que este estabelece entre as questões ditas espaciais, funcionais e programáticas e as propostas de transformação. É desta conjugação entre os atributos existentes no território e as metas propostas que a ação urbanística, subdividida operacionalmente em plano e projeto, se realizará plenamente. Em resumo, é somente no momento em que a análise ganha a forma de proposição (plano/projeto), que a ação urbanística poderá ser reconhecida como tal.
Por outro lado, para que essa completa cadeia de análise e proposição se realize é indispensável criar métodos precisos de trabalho. E, como já sabemos, o amadurecimento metodológico de uma disciplina só pode ser medido pela sua capacidade de instituir o seu próprio sistema de investigação, de configurar as suas questões e de propor recortes temporais específicos. Desafiado pelo próprio objeto de trabalho – a cidade – que se transformou em outro ente – o território – invalidando seus métodos clássicos, o urbanismo está hoje vivendo uma fase rica de criação de hipóteses de caminhos alternativos. Neste percurso, estabelecer uma relação mais exigente com o termo território tem se mostrado fundamental.
"A CIDADE É UM TERRITÓRIO QUE ORGANIZA TERRITÓRIOS" A afirmação de Marcel Roncayolo (1993), segundo a qual "a cidade é um território que organiza territórios" (6), serviu como uma luva para a renovação conceitual e para a reorganização da metodologia de trabalho do urbanismo. Sobretudo por fazer um contraponto com a inundação de conceitos que invadiu a literatura especializada a partir dos anos 80, buscando substituir os termos cidade, metrópole, região, ou, até mesmo território, por outros, que os descrevem de forma mais condizente com as novas características físicas dos espaços urbanos que estão se organizando. Dentre muitos conceitos que surgiram alguns, tais como, exopolis, metápolis, heteropolis, revelam a determinação dos estudiosos de penetrar a reestruturação do território em termos funcionais, econômicos, sociais e até mesmo formais. Todos eles apontam para novas dinâmicas que coincidem com o enfraquecimento da cidade compacta, que foi o principal alvo do urbanismo. Neste sentido, cada um desses termos traduz processos que devem ser atentamente estudados.
Regina Maria Prosperi Meyer
A observação e, sobretudo, a vivência das imensas e, aparentemente, ilimitadas manchas urbanas que compõem o panorama espacial das grandes cidades e metrópoles contemporâneas são, muitas vezes, desalentadoras. Para o urbanismo, essa observação produz perguntas de difícil resposta. As mais recorrentes nascem da dificuldade de apreender e entender a sua organização, de distinguir sua forma e de prever seu funcionamento. Diante de sua organização física se pergunta, utilizando instrumentos de trabalho já consagrados, quais serão os seus elementos estruturantes; diante de sua desmesurada dimensão se busca descobrir a lógica de seu crescimento; mergulhando no emaranhado de seus espaços surge o desafio de se estabelecer caminhos que os percorram. Em meio a todas essas questões emergem, também, algumas outras, específicas do exercício da profissão. Pois, é inevitável perguntar: qual terá sido o papel dos planejadores e dos urbanistas no processo que as levou a assumirem essa configuração, tão avessa às possibilidades e meios com os quais o urbanismo moderno trabalha?
As questões se sucedem e logo se verifica que os instrumentos para capturar a cidade, agora transformada em mancha urbana, já não poderão ser os mesmos com os quais o urbanismo vem trabalhando desde o início do século XX. As cidades e as metrópoles exigem hoje uma revisão conceitual e propositiva, proporcionalmente tão profunda e abrangente quanto as próprias transformações que estão alterando seus atributos. Será apenas a partir do esforço de renovação que surgirão as condições para uma possível metodologia de projeto na escala adequada.
Enquanto prevaleceram as distinções que demarcavam claramente o campo e a cidade, a capacidade de descrever as duas entidades, seus atributos específicos, seus pontos de contato, suas fronteiras, os avanços da urbanização sobre o campo e, principalmente, as relações que existiam entre ambas, a tarefa de intervir em cada uma delas foi exercida com alguma precisão e previsão.
A conhecida discussão acadêmica dos anos 1960 e 1970 que teve por foco o caráter indissociável que articulava o campo e a cidade, ofereceu um interessante ponto de vista sobre a importância da presença do modo de produção industrial nesses dois universos (1). Hoje esses entes precisos se dissolveram em nebulosas urbanas que confrontam nossa capacidade de reconhecer e classificar seus espaços. A própria presença de termos, tais como – mancha urbana – ou ainda, o mais expressivo – mancha de óleo – denuncia a dificuldade de apreender as suas características.
O percurso histórico do urbanismo, enquanto disciplina liberal, sobretudo na linhagem inaugurada no Renascimento e revista de forma radical na segunda metade do século XIX, atesta que a presença de um objeto claramente definido – a cidade – sempre esteve no horizonte do pensamento e da prática. Tanto a análise urbana quanto os projetos realizados durante três séculos evidenciam que o objetivo do urbanismo era justamente oferecer propostas pautadas por padrões de racionalidade formal e funcional. O tema introduzido pelo arquiteto e historiador do urbanismo Leonardo Benévolo (1975) "a cidade como objeto de projeto" sintetiza a imensa reflexão que está contida nos tratados medievais que tiveram seu foco nas cidades (2). No texto inaugural do tratadista Leon Battista Alberti (1406-1472) De Re Aedificatoria, dedicado à concepção e realização de cidades, a abordagem hierarquizada segue uma lógica baseada na escala territorial. No primeiro de seus seis princípios, L. B. Alberti aponta a região como um ponto de partida para análise e para a proposta. Resguardando as distinções óbvias é possível reconhecer alguma afinidade entre o sentido moderno do termo território e o termo região por ele utilizado. Apesar do conceito de região (3) ter adquirido uma importante presença no pensamento e na prática do urbanismo e do planejamento urbano no decorrer dos séculos XIX e XX, nesse texto do século XVI a relação, melhor dizendo, a equivalência entre ambos, é bastante clara.
Foi apenas a partir da publicação do texto "The new regional pattern" de 1945,(4) que o termo região ganhou para os urbanistas uma maior precisão, afastando-se do conceito de território. Seu autor, L. Hilberseimer (1885-1967), estava interessado em estabelecer princípios mais científicos para o planejamento urbano e para o urbanismo quando analisou o conceito de região com muito cuidado, fornecendo para os profissionais um conjunto hierarquizado de descrições e de padrões de espaços urbanizados. O seu panorama, hoje considerado muito esquemático, foi importante para a organização do pensamento e dos trabalhos dos planejadores urbanos naquele momento. Trabalhando a partir de uma classificação dos núcleos urbanos e utilizando como referência os elementos da organização espacial e dimensões das cidades, sua proposta é quase que exclusivamente voltada para o estabelecimento de categorias de núcleos urbanos e para as suas questões específicas. Sua análise, muito detalhada na descrição dos espaços urbanos, é, evidentemente, muito pouco dinâmica e simplificadora no que diz respeito às questões funcionais. Contempla muito pouco as dinâmicas de transformações inerentes ao processo de constituição dos territórios urbanos.
Foi, portanto, a partir da constatação da presença de alterações profundas no seu objeto de estudo e projeto (a cidade), assim como da insuficiência de seus instrumentos de análise, invalidando as suas premissas de trabalho, que o urbanismo reencontrou, na segunda metade do século XX, o termo território. Embora tenha recebido um olhar de viés dos geógrafos, zelosos de sua precedência no uso do termo, os urbanistas, defrontados com a nova organização urbana, não puderam abrir mão do termo território para realizar suas propostas.
A evidência de um processo de urbanização difusa que avança para áreas cujas características são muito indefinidas, nem propriamente urbanas nem tampouco rurais, aponta para a presença de uma forma de ocupação do território que vem sendo descrita como um tipo específico de suburbanização sem limites. Um grande conjunto de dados e análises confirma que a partir das duas últimas décadas do século XX um ciclo iniciado no século XVIII, de contínua dissolução da organização específica e dos limites físicos dos dois universos – o urbano e o rural – chegou a seu término. O conceito de urbanização difusa foi criado para descrever esse novo e intenso fenômeno.
DO"PROJETO TOTAL" DA CIDADE COMPACTA ÀS "PEÇAS URBANAS" DA CIDADE DIFUSA Pressionado pelos desafios das novas questões o urbanismo iniciou, na década de 1960, uma revisão de seus métodos de análise e de projeto (5). O primeiro gesto foi abdicar do conceito e, sobretudo, da prática do "projeto total". Isto é, de um projeto que abarcasse toda a cidade como objeto de projeto, fórmula tão cara aos urbanistas do início do século XX que trabalhavam com as premissas do Movimento Moderno. Hoje, diante das imensas manchas urbanas nas quais a cidade se esconde, tais premissas mostraram-se tão insuficientes que buscar novos parâmetros tornou-se essencial para a sobrevivência da própria disciplina.
Retirada do horizonte teórico e prático a ambição do "projeto total", impôs-se, como um corolário, a necessidade de criar, para fins operacionais, os novos territórios de projeto. Afinal de contas, mesmo deixando de lado a utopia de uma totalidade urbana projetável, acalentada desde o Renascimento, reconheceu-se que é fundamental demarcar espaços urbanos que serão objeto de proposta e transformação.
Face à impossibilidade do projeto total ficou assentado que o novo método de trabalho depende da capacidade de instaurar uma atividade de análise que conduza à demarcação de trechos urbanos espacialmente circunscritos e funcionalmente abrangentes. A palavra de ordem que traduz essa nova metodologia pode assim ser resumida: analisar e apreender os aspectos espaciais e funcionais do território, considerado em toda a sua extensão, e elaborar a partir daí os critérios para criar perímetros homogêneos no seu interior, nos quais um partido de projeto poderá ser desenvolvido. O termo "peça urbana" descreve um trecho de cidade no qual se estabelece um perímetro que será objeto de análise e de projeto urbano.
Intervir no território criou para os urbanistas a necessidade de aperfeiçoar seus instrumentos de leitura e de interpretação do território. Esse encaminhamento, aparentemente simples, é uma verdadeira revolução na relação entre o urbanismo e o território, pois exige de saída que a atividade de projeto se inicie pela análise que definirá, da forma mais precisa e justificada possível, o trecho urbano que será objeto de intervenção. Como desdobramento lógico dessas operações tornou-se também indispensável estabelecer uma relação clara com todas as escalas com as quais o perímetro demarcado está relacionado, tanto do ponto de vista espacial quanto funcional.
É também importante não perder de vista que todos esses encaminhamentos metodológicos do projeto urbano atendem à necessidade de superar as formas de abordar a cidade compacta, pois a análise da grande escala, isto é, do território, é decisiva para o projeto que agora assume como objetivo articular as "peças urbanas" que compõem a cidade difusa.
Para entender o significado dessa renovação, é preciso lançar um rápido olhar sobre a própria história da prática do projeto urbano. Considerando o seu percurso teórico e suas proposições, vemos o quanto a "ordenação do território" foi o grande objetivo e o único princípio norteador. Sendo que o auge deste objetivo se exprimiu através das premissas funcionalistas de organização total das cidades através de um quadro considerado hoje bastante limitado das funções urbanas. A superação desse modelo é hoje um consenso e ponto de partida para uma revisão teórica e prática da arquitetura e do urbanismo. É a partir deste ponto que podemos construir a pergunta-chave para o urbanismo contemporâneo: qual é hoje o território do plano urbanístico e o território do projeto urbano, tendo em vista as novas dinâmicas de transformação?
Antes de apresentar algumas idéias e discutir encaminhamentos para tentar buscar uma resposta, é necessário também observar a especificidade da atividade urbanística. Pois, depois de tantas décadas de desencontro entre teoria e prática urbanística, é necessário rever algumas questões. A primeira, já mencionada acima, diz respeito ao fato da atividade urbanística só se realizar plenamente se forem observados dois parâmetros essenciais: o primeiro é trabalhar em nova escala e, o segundo, é identificar e descrever os atributos físico-espaciais associados às novas funções que o território está desempenhando na organização produtiva contemporânea. Essas duas questões são centrais para o tema deste artigo, qual seja, como o urbanismo deve abordar o território urbanizado neste momento em que a cidade ganha novas configurações.
É um fato, já bastante observado e muito teorizado, que a reestruturação das cidades e metrópoles está, desde a década de 1980, vinculado às mudanças dos padrões das atividades urbanas e à escala e configuração adquirida pelas manchas urbanas. Portanto, antes de abordar as "manchas urbanas como objeto de projeto", é importante relembrar que o urbanismo é uma atividade analítica que se realiza apenas quando assume uma dimensão propositiva. Desta forma, para afirmar que um trabalho se realiza na área específica do urbanismo, é necessário avaliar a conjugação que este estabelece entre as questões ditas espaciais, funcionais e programáticas e as propostas de transformação. É desta conjugação entre os atributos existentes no território e as metas propostas que a ação urbanística, subdividida operacionalmente em plano e projeto, se realizará plenamente. Em resumo, é somente no momento em que a análise ganha a forma de proposição (plano/projeto), que a ação urbanística poderá ser reconhecida como tal.
Por outro lado, para que essa completa cadeia de análise e proposição se realize é indispensável criar métodos precisos de trabalho. E, como já sabemos, o amadurecimento metodológico de uma disciplina só pode ser medido pela sua capacidade de instituir o seu próprio sistema de investigação, de configurar as suas questões e de propor recortes temporais específicos. Desafiado pelo próprio objeto de trabalho – a cidade – que se transformou em outro ente – o território – invalidando seus métodos clássicos, o urbanismo está hoje vivendo uma fase rica de criação de hipóteses de caminhos alternativos. Neste percurso, estabelecer uma relação mais exigente com o termo território tem se mostrado fundamental.
"A CIDADE É UM TERRITÓRIO QUE ORGANIZA TERRITÓRIOS" A afirmação de Marcel Roncayolo (1993), segundo a qual "a cidade é um território que organiza territórios" (6), serviu como uma luva para a renovação conceitual e para a reorganização da metodologia de trabalho do urbanismo. Sobretudo por fazer um contraponto com a inundação de conceitos que invadiu a literatura especializada a partir dos anos 80, buscando substituir os termos cidade, metrópole, região, ou, até mesmo território, por outros, que os descrevem de forma mais condizente com as novas características físicas dos espaços urbanos que estão se organizando. Dentre muitos conceitos que surgiram alguns, tais como, exopolis, metápolis, heteropolis, revelam a determinação dos estudiosos de penetrar a reestruturação do território em termos funcionais, econômicos, sociais e até mesmo formais. Todos eles apontam para novas dinâmicas que coincidem com o enfraquecimento da cidade compacta, que foi o principal alvo do urbanismo. Neste sentido, cada um desses termos traduz processos que devem ser atentamente estudados.
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